Análise: Após anos de queda a pirataria deve voltar a aumentar

A maior causa disso são os novos serviços de streaming — em especial de filmes e séries

Marcell Almeida
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A pirataria reduziu bastante nos últimos anos com a popularização de serviços de streaming como o Netflix. O problema é que isso começou a mudar lentamente em 2018 e a tendência é mudar drasticamente nos próximos anos.

De acordo com o relatório Global Internet Phenomena de 2011 o compartilhamento de arquivo via Torrent (legal ou ilegal) girava em torno de 52% nos EUA e na Europa 59%. Porém, em 2015, esses números caíram drasticamente, chegando a 26% nos EUA e 21% na Europa.

No Brasil a situação é até um pouco mais agravante porque muitas séries passam apenas nos EUA e não têm boa distribuição internacional, então as pessoas fazem o download já que não possuem acesso ao conteúdo. O Game of Thrones, por exemplo, é tão popular que a menos que seja lançado ao mesmo tempo no mundo todo, as pessoas farão o download no momento em que estiverem disponível em qualquer lugar.

Neste artigo escrevo um panorama geral sobre o mercado para ilustrar como essa nova situação deve aumentar a pirataria novamente.

Dados sobre streaming de vídeo do relatório Global Internet Phenomena de Outubro de 2018

Netflix e a sua predominância global

No mundo inteiro o Netflix é a referência quando se trata de streaming de filmes e séries. Acontece que ele não é mais o único player no mercado global e no Brasil a concorrência também está ficando acirrada com o Globo Play, a chegada do Amazon Prime Video e outros serviços como HBO Go e o Now da NET/Claro. De acordo com o relatório Global Internet Phenomena, o streaming de vídeo representa 58% de todo o tráfego global, e só o Netflix possui 26% de todos os dados de streaming consumidos — não é à toa que outras marcas estão entrando nesse mercado.

Conteúdo exclusivo: Originais Netflix

Vamos supor que você queira assistir a série “Stranger Things”, dai você vai para o Netflix. Mas e se você quiser assistir “The Office”? Vai precisar ter uma assinatura do Amazon Prime Video. E que tal “House”? Vai precisar assinar Globo Play. E, como todos sabem, para ver Game Thrones precisa ter HBO Go. Isso sem comentar todas as outras séries exclusivas que cada serviço de streaming produz.

Fun fact: Game of thrones foi durante seis anos seguidos o programa de TV mais pirateado no mundo. Eles chegaram em um pico de downloads simultâneos de até 400 mil pessoas.

Disney+

A coisa fica pior quando paramos para pensar que a Disney vai lançar o seu serviço de Streaming nesse ano (2019) e todo o seu acervo de conteúdo sairá do Netflix — isso inclui os filmes da Marvel, todos os filmes e desenhos da Lucas Film (produtora do Star Wars), filmes da Pixar, acervos da Fox e muito mais.

A Disney inclusive lançou um site já intitulado “Disney+” com os logotipos da Pixar, Star Wars, National Geographic e Marvel. Em 2017 eles anunciaram que tirariam todos os seus filmes da Netflix em 2019 (começando pelos EUA) para lançar o seu próprio serviço de streaming. No ano passado compraram a Fox por US$ 71,3 bilhões, reforçando ainda mais sua biblioteca já que a Fox é detentora de grandes títulos como American Horror Story, Outlander e até mesmo Family Guy. O Disney+ também contará com novas séries e filmes originais, incluindo séries originais do Loki. A briga pela sua assinatura mensal vai ser muito feia e quem perde é a gente.

A meu ver a Disney é a que vai causar um dos maiores estragos no mercado de Streaming. Eles virão com muita força com conteúdo novo e exclusivo fora os vários clássicos (Aladdin, Rei Leão e outros) que vão dar uma base forte.

OBS: Os acordos entre Disney e Netflix são feitos para cada país, portanto ainda não se sabe quando os títulos sairão do Netflix Brasil.

Site do Disney+ antes do lançamento

Hulu e Disney

A Disney é sócia do Hulu (serviço de streaming ainda não disponível no Brasil) junto com a Fox, a AT&T e a Comcast. Mas a aquisição da Fox dará à Disney participação de 60% no Hulu, permitindo que ela tenha maior controle sobre o futuro deles.

No fim do ano passado o CEO da Disney disse o seguinte:

“Achamos que há uma oportunidade de aumentar o investimento no Hulu, especialmente no lado de conteúdo. Com essa aquisição, não conseguimos apenas algumas grandes [propriedades intelectuais], mas também alguns excelentes talentos, particularmente no lado da TV”.

Além disso ele também falou brevemente sobre alguns planos para o Hulu que além de querer aumentar a base de assinantes querem criar mais conteúdo original e entrar em mercados internacionais — então pode ser que boa parte do conteúdo exclusivo da Disney entre para o Hulu também.

AT&T e WarnerMedia

A gigante das telecomunicações AT&T é mais uma grande empresa que irá lançar um serviço de streaming próprio. Através do seu conglomerado WarnerMedia, ela pretende colocar no mercado mais um concorrente para o Netflix até o quarto trimestre de 2019 — por enquanto sem data para chegar no Brasil.

A empresa divulgou que o novo serviço irá contar com o portfólio de séries e filmes da HBO e da Warner Bros — para quem não sabe a AT&T comprou a HBO em 2018. Isso é um indicativo de que o serviço pode ser uma espécie de sucessor do serviço atual da HBO.

O fim do Youtube Premium

Thumbnail do primeiro episódio da série Cobra Kai disponível no YouTube Premium

Ano passado o YouTube lançou o YouTube Premium (antigo YouTube Red) com conteúdo próprio e exclusivo (um deles foi a continuação do Karate Kid — Cobra Kai — em formato de série. Muito bom, por sinal!). Mas recentemente anunciaram que estão cancelando o plano de assinaturas e irão disponibilizar seu conteúdo premium gratuitamente, com anúncios, para todos os usuários do YouTube. O USA Today publicou um artigo sobre a mudança, intitulado “Nem todo mundo está disposto a pagar por assinaturas. Basta perguntar ao YouTube". De acordo com o artigo as pessoas estão cansadas de tantas assinaturas e eu concordo plenamente com isso.

O YouTube viu à evolução do mercado de streaming de vídeo e tentou replicar o modelo. Funcionou para o Netflix, funcionou para a Amazon. funcionou para o Hulu, tem funcionado para a Globo… por que não iria funcionar para o Youtube? Simples. Saturação do mercado.

Update: O Youtube voltou atrás e manteve a versão Premium.

No mercado do futebol as coisas não estão tão diferentes

O mais engraçado é que estamos vendo um movimento semelhante no mercado de futebol global e no Brasil isso começou a acontecer de maneira mais aparente nesse ano de 2019 já que finalmente o grupo Globo tem ganhado uma concorrência respeitosa para as transmissões de futebol.

Em 2019 o Esporte Interativo irá fazer pela primeira vez transmissões da Série A do Campeonato Brasileiro. Curiosamente o Facebook vai transmitir os jogos da Libertadores também. Eles compraram os direitos de transmissão do campeonato de 2019 até 2022 e poderão passar um jogo da competição por semana gratuitamente pela plataforma, o que acontecerá às quintas-feiras. Esta não é a primeira vez que a empresa faz este tipo de ação. Atualmente, o Facebook transmite a Liga dos Campeões, após fechar parceria de conteúdo com a Fox. O campeonato europeu é transmitido na rede social no Brasil pelo Esporte Interativo através da página do El no Facebook.

E o streaming de música? A pirataria nesse segmento deve seguir caindo

Dados sobre streaming de aúdio do relatório Global Internet Phenomena de Outubro de 2018

A indústria de aúdio (música, podcast etc), por outro lado, é dominada pelo Spotify enquanto o Apple Music está crescendo vertiginosamente ano após ano. É super interessante ver que em comparação com a indústria de vídeo a da música se saiu bem mesmo que durante anos tenha sofrido por causa do Kazzaa, Emule e tantos outros. A pirataria exagerada em meados de 2000 até mais ou menos 2012 levou as gravadoras aos braços da Apple, que criou o conceito de vender músicas ao invés de vender o álbum inteiro. O streaming voltou com o conceito de escutar álbums e o preço acessível facilitou isso.

O problema dessa indústria na verdade é outro. Enquanto as gravadores resolveram licenciar tudo para o Spotify, Apple Music e outros, as empresas de streaming não conseguiram uma base de usuários suficiente para atrair fornecedores (artistas e gravadoras) — e esse é exatamente o problema: as margens dessas empresas estão completamente à mercê das gravadoras e, mesmo após uma renegociação das taxas e royalties, elas ainda não conseguem mostrar um crescimento saudável.

Gráfico do Spotify para exemplificar a situação que todas as empresas se encontram

Nesse segmento o problema para o consumidor está bem resolvido — se trata mais de um problema da empresa que faz o streaming em si. Outro problema é que nenhum desses serviços são fortes em criação de conteúdo próprio (para isso teriam que se tornar uma gravadora) o que deixa eles ainda mais a mercê das gravadoras e artistas.

Conclusão

Aparentemente um dos principais fatores da pirataria é que muitos países não possuem acesso a conteúdos exclusivos e então as pessoas precisam piratear para assistir. Portanto, com o aumento de conteúdo exclusivo já que os serviços de streaming deve se multiplicar nos próximos meses, isso deve alavancar a pirataria no nível global.

Mas não é só isso, o "unbundling" da disponiblidade do conteúdo é um grande agravante também. O pior de tudo é que é curioso como as empresas não aprendem com a história — imaginem se cada gravadora quisesse lançar seu serviço de streaming. É justamente nesse caminho que o mercado de streaming de vídeo está indo (na direção contrária!). É uma pena ver que eles irão, muito provavelmente, repetir o erro das gravadoras que tentaram ao máximo fugir da Apple, Spotify, Deezer, Rdio (RIP) e outros. Se a tendência atual se mantiver, dentro de alguns anos os consumidores serão obrigados a assinar uma quantidade exobirtante de serviços de streaming com o preço de R$ 20 a R$ 35 por mês apenas para obter todo o conteúdo que estão procurando.

Além do custo tem também a experiência do consumidor que será prejudicada. Com tantos serviços disponíveis o seu esforço para encontrar uma determinada série ou filme será muito maior — vai chegar num ponto que você vai esquecer quem é detentora de determinados conteúdos e com isso a experiência vai ficar horrível pois você terá que ficar acessando todos os serviços para descobrir se tem o que você quer assistir. Vejo algumas possibilidades, 1) Baixar o filme pela praticidade (aumentar a pirataria); 2) Assistir pelo Popocorntime ou similares (aumentar pirataria) ou; 3) Alguém desenvolver um serviço que agrega todos os serviços de streaming e diz onde está disponível cada série e filme mas duvido muito que algo de tremenda qualidade apareça sem a colaboração de cada serviço abrindo as suas APIs.

Usando como referência a história recente dos serviços de streaming de música, levará cerca de dois anos para a indústria identificar e admitir que isso de exclusividade está aumentando gradativamente a pirataria. Quando chegar nesse ponto, eles provavelmente queimarão uma grana em “soluções” como tentar barrar todo mundo que compartilha senha ou vão tentar algo estúpido como CODEC (lembram disso?) ou vão tentar, mais uma vez, derrubar a indústria de torrents, para então chegarem na conclusão central: é melhor licenciar o conteúdo para empresas boas e focadas nisso (como o Netflix) — em vez de todo mundo lançar seu próprio produto de streaming.

Publicado originalmente aqui: https://noticias.uol.com.br/tecnologia/noticias/redacao/2019/01/26/dividir-a-senha-da-netflix-com-familia-e-amigos-esta-com-os-dias-contatos.htm

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